segunda-feira, fevereiro 25, 2013

CÂNTICO NEGRO

O poema de José Régio - Cântico Negro - foi me apresentado por Maria Betânia, quando escutei uma fita cassete com seus sucessos. Nem precisa dizer que isso já faz muito tempo, pois as fitas cassetes já deixaram de existir há muitos anos, como forma de comercialização de músicas, claro. Escutando a Betânia declamando o poema, fiquei imediatamente fixado na continuação dos versos, como se fosse aquela verdade que buscava desde minha adolescência entre os livros de filosofia, religião e ciência. Hoje, dando o devido desconto, ainda me serve como parâmetro para as minhas atitudes pessoais e na minha atuação como professor. Nesta última, procuro me vigiar evitando dar o caminho "certo" aos alunos, mas os vários caminhos possíveis e as prováveis consequências da escolha de cada um. A decisão deverá ser individual e de conformidade com seus valores morais e éticos, mas seja qual for, fundamentada em conhecimento pré-adquirido.
Para saber mais sobre o escritor português José Maria dos Reis Pereira ( José Régio é pseudônimo ) clique aqui. Abaixo o texto e o vídeo de Maria Betânia com o poema.

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: " Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
( Há, nos olhos meus, ironias e cansaços )
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali ...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos ...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí ...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos? ...
Corre, na vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o longe e a miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos ...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios ...
Eu tenho a minha loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios ...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou ...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio


              

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